Pesquisas com células-tronco avançam no mundo — e Brasil é destaque

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De HIV a cura da calvície, as células-tronco estão se tornando uma importante ferramenta para a medicina regenerativa – e a ciência brasileira tem destaque nessa nova corrida

Nova York, Düsseldorf, Londres e Berlim são os codinomes das pessoas que representam, possivelmente, os primeiros casos de cura da infecção pelo vírus HIV por meio de um método inovador: o transplante de células-tronco.

Os quatro eram portadores do vírus causador da aids e sofriam com câncer sanguíneo (três com leucemia e um com linfoma não Hodgkin). A partir do tratamento com quimioterapia e da intervenção com células de doadores compatíveis, eles tiveram a remissão dos sintomas – tanto do câncer no sangue quanto da imunodeficiência.

O caso de Nova York virou notícia em março deste ano, após a publicação de um estudo no periódico Cell por cientistas de diversas instituições dos Estados Unidos. Com 64 anos, a pessoa por trás do nome da cidade estadunidense é a única mulher do grupo. Ela também foi a única que recebeu células-tronco retiradas do cordão umbilical de um bebê, que tinha genes de resistência ao HIV. O transplante aconteceu em 2017, ela está livre do câncer há cinco anos e sem medicação antirretroviral há dois.

Outro fato notável da paciente norte-americana é que ela é parda. Estima-se que a incidência do gene mutante imune ao HIV seja menor do que 1% em populações não brancas — o que reduz as chances de a intervenção ser bem-sucedida em alguém como Nova York.

Os resultados estão sendo celebrados pela comunidade científica por confirmarem não só a possibilidade de eliminar o HIV do organismo, mas a consistência da técnica baseada nesses recursos celulares — que há décadas vêm chamando atenção por suas promessas incalculáveis de cura.

Por um punhado de células
Os seres humanos são compostos por 37 trilhões de células, que podem ser classificadas em mais de 200 funções. Todas elas – ósseas, cerebrais, sanguíneas, musculares ou sexuais – derivam de células-tronco (CT). Não à toa, em alguns idiomas, como espanhol e árabe, elas são chamadas de células “mãe” ou “raiz”, pois têm a habilidade de originar, autorregenerar e se transformar em células e tecidos específicos.

As células-tronco podem ser divididas em dois grandes grupos de acordo com sua origem e capacidade de diferenciação. O primeiro é o das adultas (hematopoiéticas e mesenquimais), que aparecem durante o desenvolvimento fetal e permanecem no organismo por toda a vida. O segundo é formado pelas embrionárias (totipotentes e pluripotentes), presentes em embriões humanos poucos dias após a fecundação, antes mesmo que eles se fixem no útero.

Comparadas às embrionárias, as células-tronco adultas são mais especializadas. Elas funcionam como cartas de um mesmo naipe. Por exemplo, as hematopoiéticas, que dão origem aos sistemas imunológico e sanguíneo, podem gerar glóbulos vermelhos, glóbulos brancos e plaquetas, mas não produzem células cerebrais. Da mesma forma, células mesenquimais, capazes de se diferenciar para formar tecidos de gordura, musculares ou ósseos, não darão origem a células do sangue.

As CTs adultas são velhas conhecidas da ciência: estão na medula óssea, na veia do cordão umbilical, na placenta. Mais recentemente, foram descobertas em células de gordura, na polpa dos dentes, nas paredes do intestino e “camufladas” em vários outros lugares para substituir células e reparar tecidos que foram danificados em lesões ou pelo próprio envelhecimento.

Nos anos 1980, três décadas após os primeiros transplantes com células-tronco da medula óssea, pesquisadores perceberam que, além de terem células mesenquimais, a placenta e o cordão umbilical são fontes abundantes de células-tronco hematopoiéticas (semelhantes às da medula) – logo, possuem grande propriedade imunológica e de regeneração.

Soma-se a isso o fato de as células do cordão umbilical serem de mais fácil acesso, mais jovens, menos expostas a vírus e bactérias e 100% compatíveis com a própria pessoa, o que reduz os riscos de complicação em transplantes. Essa descoberta abriu caminho para o estudo de terapias contra centenas de problemas. Décadas depois, o caso de Nova York é um reflexo disso.

Doenças in vitro

Degeneração da mácula, incontinência urinária, diferentes tipos de câncer, tratamento de queimaduras, sequelas de AVC, doenças cardiovasculares, neurodegenerativas, autoimunes, hepáticas, respiratórias e até reversão da calvície compõem a extensa lista de males que podem ser combatidos com células-tronco.

Com elas, os cientistas conseguem compreender o desenvolvimento de doenças sem depender de animais ou embriões humanos. “As células-tronco pluripotentes induzidas foram uma grande revolução, porque além de tirar a limitação que temos com o embrião, permitiram que se utilizassem essas células em pesquisa básica, para ser um modelo robusto de doenças humanas in vitro”, explica a física Lygia da Veiga Pereira, diretora do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias (LaNCE), do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da Universidade de São Paulo (USP). “Agora podemos pegar células de uma pessoa com Alzheimer, por exemplo, e produzir neurônios com Alzheimer para analisá-los. As células-tronco pluripotentes induzidas foram uma grande revolução, porque além de tirar a limitação que temos com o embrião, permitiram que se utilizassem essas células em pesquisa básica”, Lygia Pereira, diretora do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias

Mas nem tudo são flores. Sempre que uma área ganha destaque na medicina, cresce a picaretagem em torno dela. Não foi diferente após a descoberta de Takahashi e Yamanaka, quando formou-se um verdadeiro turismo por clínicas que prometiam intervenções milagrosas com células-tronco a partir de métodos que ainda não foram devidamente aprovados pelos órgãos responsáveis.

Em 2017, a Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora dos Estados Unidos que corresponde à Anvisa no Brasil, emitiu um alerta sobre “prestadores de serviços sem escrúpulos que oferecem células-tronco sem eficácia comprovada”.

“Algumas clínicas anunciam falsamente que a terapia com células-tronco não precisa ser avaliada e aprovada pela FDA. Mas quando os ensaios clínicos não são conduzidos sob um IND [sigla em inglês para solicitação para novos medicamentos experimentais], isso significa que a FDA não avaliou a terapia para ajudar a garantir que ela seja razoavelmente segura”, diz a agência no comunicado.

No momento, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, as promessas estão ainda em fase de testes. O que está ao alcance da população são as células-tronco obtidas do sangue ou da medula óssea para tratar pacientes com câncer, distúrbios hepáticos ou imunológicos. Em 2020, a Anvisa chegou a atualizar suas diretrizes sobre a avaliação de terapias celulares com base nos critérios das agências dos EUA, do Japão e da Europa. O que não faltam por aqui, contudo, são pesquisas que investigam as inúmeras promessas das células-tronco para nossa saúde.

Brasil no topo

Uma a cada 650 crianças que nascem no país tem fissura labiopalatina. Esse problema congênito de má formação dos lábios e do palato (o céu da boca) pode prejudicar o desenvolvimento e é envolto em preconceito. As crianças têm mais dificuldade para comer e falar, o que pode levar a má nutrição, e também costumam sofrer bullying e até enfrentar problemas de socialização na vida adulta.

A dentista Daniela Franco Bueno luta para mudar esse cenário. Pesquisadora de células-tronco há 20 anos, quando esse campo da ciência ainda era “mato”, ela desenvolveu um método que assegura menos dor e menor tempo de recuperação. Em vez de retirar um naco da bacia, a ideia é usar células-tronco dos dentes de leite da própria criança para preencher o palato. “Se a gente tem célula-tronco mesenquimal em qualquer tecido do corpo e sabemos que os enxertos de ossos nas fissuras são feitos entre 8 e 12 anos, por que, em vez de usar a crista ilíaca, não usamos célula-tronco do dente de leite — que, querendo ou não, vai cair?”, indaga Bueno.

As pesquisas feitas pelo time liderado por Fernandes tiveram resultados positivos até o momento. “Tenho uma visão otimista, acho que em cinco a dez anos esse tipo de terapia estará disponível no Brasil”, diz o médico. As mesmas capacidades de regeneração e reconstrução das células tronco podem ser úteis, ainda, na dermatologia. Um estudo brasileiro de 2020 mostrou que um tratamento com CTM contra o envelhecimento da pele trouxe resultados positivos em semanas. A injeção de células-tronco do tecido adiposo se revelou capaz de regenerar a pele afetada por elastose solar, processo em que as fibras elásticas e de colágeno são desgastadas pela exposição ao sol.

Até na compreensão dos efeitos de antidepressivos na gravidez essas células podem ajudar. Para tentar entender melhor a atuação dessas drogas no cérebro humano, cientistas do Laboratório de Neurogenética da Universidade Federal do ABC, em São Paulo, propuseram um modelo experimental de ensaios com células-tronco de pluripotência induzida para investigar os neurônios do embrião no útero de mulheres em tratamento com antidepressivos. Como esse tipo de célula-tronco tem o poder de gerar organoides cerebrais, ele pode ser aproveitado para observar os efeitos dos remédios em diferentes dosagens e ao longo do desenvolvimento embrionário.

O Brasil é o terceiro país com mais pesquisas em células-tronco nas Américas, atrás de Estados Unidos e Canadá, como mostra a plataforma ClinicalTrials.gov, que reúne ensaios clínicos de todo o mundo. Somente em 2023, por exemplo, um professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em parceria com Harvard, teve três estudos divulgados em publicações científicas de renome. Edroaldo Lummertz da Rocha e sua equipe usaram um software específico para investigar processos biológicos na formação de células sanguíneas. Uma proteína chamada APP, conhecida por estar envolvida em doenças neurodegenerativas, também participa da criação de células-tronco hematopoiéticas, segundo as investigações.

“Existe um interesse grande da academia e, além da qualidade dos profissionais envolvidos, os custos para pesquisas e ensaios clínicos são comparativamente mais baratos do que nos Estados Unidos, por exemplo”, lembra Tiago Lazzaretti Fernandes. A esperança é que, enquanto as pesquisas avançam, mais pessoas possam colher os frutos que brotam desse ramo da ciência.

Fonte: Revista Galileu – https://revistagalileu.globo.com/saude/noticia/2023/07/pesquisas-com-celulas-tronco-avancam-no-mundo-e-brasil-e-destaque.ghtml